Samuel Câmara
Pastor da Assembleia de Deus em Belém
Um dos fatos mais pitorescos de indagação filosófica a respeito da
verdade se deu, não numa reunião regular de filósofos, ou numa sala de
aula de uma conceituada universidade, nem mesmo num congresso voltado
para o tema, mas em um julgamento de exceção. Quando o juiz, mesmo sem
prova alguma contra o réu, ouviu deste que a sua razão de estar no mundo
era “dar testemunho da verdade”, perguntou-lhe de chofre: “O que é a
verdade?”.
O nome do juiz é Pilatos, governador romano da Judeia. O réu em questão
é Jesus de Nazaré. O mais interessante de tudo não é necessariamente a
pergunta, mas a atitude do governador após tê-la proferido, em não
esperar resposta alguma do seu interlocutor. Diz o texto bíblico: “Tendo
dito isto, voltou aos judeus e lhes disse: Eu não acho nele crime
algum” (Jo 18.37,38).
Bem, Jesus não dissera somente que viera dar testemunho da verdade, mas
também acrescentara: “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”. E
isso foi tudo o que Pilatos não fez.
Ainda
hoje, não poucos agem como Pilatos; embora desejem saber sobre a
verdade, não param para ouvir a Fonte da própria Verdade (com V
maiúsculo mesmo). Desse modo, convém perguntar: Para que queremos a
verdade? Se a verdade é necessária para que os pilares morais de uma
sociedade sejam firmes e não se rompam; se é essencial para que a paz
reine sob o manto da justiça; se é imprescindível para o respeito mútuo
preconizado nas leis; sim, então, por que muitos daqueles que deveriam
dar exemplo de uma vida pautada pela verdade lhe viram as costas ou
passam cinicamente ao seu largo, fazendo-lhe pouco caso?
Para
que serve a mentira? Se a mentira tem o poder de solapar os fundamentos
morais de uma sociedade, então, por que vivemos com a certeza de que a
nossa coexistência social teima em permitir os valores da mentira? Por
que vemos não poucas pessoas serem regidas descaradamente sob a égide da
mentira e acobertadas pelo seu manto, e isso parece não incomodar a
maioria?
Alguém já notou: a mentira passa diante de nós como uma torrente interminável, que vai destruindo os nossos valores morais.
Daniel
Webster, em meados do Século XIX, predisse: “Se a verdade não for
difundida, a mentira o será. Se Deus e Sua Palavra não forem conhecidos e
recebidos, o Diabo e suas obras ganharão a ascendência... a corrupção e
as trevas reinarão”.
Em
março de 1921, Rui Barbosa escreveu: “De tanto ver triunfar a nulidade;
de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De
tanto ver agigantar-se o poder nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser
honesto”.
A honestidade só viceja no terreno fértil da verdade, não no solo pantanoso da mentira.
Pode
até parecer alarmista, mas há sobejas evidências de que a sociedade
está num rápido descenso moral, e isso, ao fim e ao cabo, tem um preço
alto e por demais amargo. As nossas instituições sofrem cada vez mais de
descrédito. As nossas esperanças de um país melhor continuam sob o
manto do medo de tudo dar errado. O nosso futuro, que nunca chega,
parece estar escorregando ladeira abaixo nos rumos obscuros da História.
O
perigo está principalmente nos filhos da mentira que esse estado de
coisas acaba gerando. O filho primogênito da mentira é o Cético, aquele
que duvida de tudo, cuja pauta de vida é a descrença. Ele só crê numa
coisa: que não se pode chegar a qualquer conhecimento indubitável nos
domínios da verdade geral ou absoluta.
A
mentira pariu, então, seu segundo filho: o Cínico. Seu comportamento
pode ostentar princípios e/ou praticar atos imorais e obscenidades, pois
é um indivíduo sem escrúpulos; é hipócrita, sarcástico e oportunista.
Engravidada
da desonra, a mentira pariu seu terceiro filho: o Crédulo. Ele crê
facilmente em tudo, sem malícia alguma; é ingênuo, não pesa as coisas
nem examina as ideias.
Pilatos era um pouco dos três, por isso lhe foi normal dar as costas à
verdade. Preferiu o justicialismo das ruas e o clamor da multidão ávida
por “circo”, em vez do império da lei e do testemunho imponente de um
inocente.
A
verdade tem um único filho: aquele que de algum modo ouve a voz da
própria verdade. Quem assim procede, arrisca-se a acreditar em mudanças
qualitativas; além disso, leva demasiado a sério as suas obrigações e
por elas tem entusiasmo; enfim, acredita na verdade, por ela vive e pode
até mesmo morrer por sua causa.
É
fácil ser cético e deixar tudo como está para ver como é que fica. É
fácil ser cínico e fazer de conta que nada nos afeta ou que podemos
tirar vantagem de alguma coisa. É igualmente fácil ser crédulo e ir
passando pela vida e não viver.
Difícil
mesmo é ser da verdade, é ouvir a voz de Jesus a clamar: “Eu sou o
caminho, e a verdade, e a vida” (Jo 14.6). Difícil é corresponder à
verdade no burburinho da vida cotidiana, fazendo tudo ao seu alcance em
prol da mudança para o bem maior que se deseja.
Afinal, para que queremos a verdade?
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